O prazer da espera
Se alguém dissesse que se pode viver todas as semanas de uma vida apenas na expectativa de numa qualquer manhã receber uma carta, muitos pensarão ser essa uma rematada tontice. E no entanto estou em condições de afirmar que, com o tempo, esta passa a ser uma doce e suave maneira de passar os dias, sobretudo se, no intervalo dessa paciente espera, se se aproveitar para fazer outras coisas igualmente agradáveis.
Antigamente essa carta só poderia chegar ou numa segunda-feira ou então numa quinta. Melhor: em rigor chegaria ou na tarde de domingo ou então na madrugada de quarta. Porém, só na manhã seguinte me seria entregue, infelizmente ainda hoje não temos distribuição nocturna de correspondência. Assim, todas as segundas e quintas-feiras levantava-me bastante mais cedo que o normal, e fazia toda a minha higiene a tempo de estar arranjado rigorosamente às oito horas. É que podia acontecer a carta chegar em correio expresso ou então nessa outra modernice a que chamam de “correio acelerado”, e os estafetas virem fazer a entrega e eu não estar disponível. Ora quando é assim, muitos deles têm o péssimo hábito de meter a correspondência por baixo da porta, e basta estar o chão molhado ou vir um pé-de-vento para suceder uma desgraça.
Houve, por exemplo, uma segunda-feira cuja noite tinha passado a sonhar com as sábias lições da carta que vivo esperando, razão que me fez acordar um pouco mais tarde. E como um azar nunca vem só, igualmente me atrasei na casa de banho, e eis que batem à porta, eram precisamente oito horas e cinco minutos.
Nesse instante pacientemente aguardado durante meses e meses a fio, estava debaixo do chuveiro num inabitual quente banho porque amanhecera descoberto e quase resfriado, tudo provocado pelas insónias induzidas pela catequização a que durante horas tinha sido submetido através das eloquentes frases do meu amigo cuja carta passara a noite a ler com a unção de um discípulo zeloso. Porém, ouvindo assim retinir brutalmente a campanhia, larguei o sabonete no chão da banheira, e sem tempo sequer de fechar a torneira, precipitei-me descalço para a porta, ainda ensaboado e de tronco nu, apenas uma pequena toalha à volta da cintura.
Toda essa azáfama para deparar com o mancebo encarregado de tirar a conta da água e luz. Tinha vindo a correr para o pátio tão absolutamente convencido de que se tratava da carta que finalmente chegava que me senti tomado de uma profunda frustração que em violenta fúria impiedosamente descarreguei sobre o coitado do rapaz: Você tem que ter mais respeito a tocar a campaínha da porta de cada um, gritei-lhe não só zangado como também porque agora estava em lágrimas por causa dos restos de espuma de sabão que me escorregavam dos cabelos e desciam pela cara entrando nos olhos, uma pessoa ouve esse alarido, pensa que é um terramoto, o fim o mundo ou a casa em chamas, sai para a rua neste estado despido, desse modo correndo desnecesários riscos de saúde ou mesmo de vida…
Na hora nem sequer sabia que não estava a exagerar. Porque pouco depois já tossia, e pela tarde tinha febre. Comecei por achar que passaria com os chás de mato da terra, e quando finalmente fui ao médico ele olhou para mim com uma inabitual severidade, aplicou-me o estetoscópio nas costas e no peito, mandou fazer as costumeiras macaquices, tossir, escarrar, dizer trinta e três, depois pediu chapas de raio X e por fim diagnosticou circunspecto que eu tinha arranjado uma bela peneumonia. Muito bem, por cima de queda, coice!
A forma que inventei para consumir os dias que o médico me ordenou ficar de cama (“deve guardar o leito por um período de duas semanas e depois voltar aqui”), foi obrigar a minha imaginação a fantasiar o conteúdo da carta que vivo esperando. Digo obrigar, porque de há muito que dei por mim mais no anseio da sua chegada que propriamente das suas revelações. Porque sei sem qualquer dúvida que ela falará da Siama e do que caracterizámos na altura como sendo o mistério da Siama, e hoje em dia já apenas me divirto ao lembrar-me das loucas torturas a que me submeti em nome da paixão que ela tinha ateado em mim.
No entanto, tenho que reconhecer que a Siama foi um mau bocado na minha vida. É verdade que há muito que a sua imagem se perdeu do meu espírito, confundida como acabou por ficar no meio de muitas outras imagens dolorosas, porém foi desta concreta que incansavelmente e sem nenhum intervalo falámos, eu e o meu amigo, durante os oito dias que permaneci enclausurado na sua casa, inutilmente esperando que ela chamasse. Aliás, “falámos” é uma forma de dizer, porque de facto eu falei e falei e falei. Ele limitava-se a ouvir e a abanar a cabeça mostrando que me escutava com atenção enquanto me encharcava de vinho que ininterruptamente ia despejando-se no meu copo e eu ia emborcando como um sedativo para a dor que consumia a minha amargurada alma. E foi ainda dela que eu falava, já a caminho do aeroporto de regresso a casa, desesperado de um silêncio que se assemelhava a uma morte indigna.
Vou escrever-te uma carta, disse-me ele como que consolando-me no abraço de despedida, conheço muito bem as mulheres do tipo desta tua Siama, vou-te explicar certas coisas que ainda não tiveste tempo de aprender acerca delas, vai descansado que a minha carta te fará entender não só as crueldades do mundo feminino como também como funcionam as suas cabecinhas, de certeza que da próxima vez que nos encontrarmos já nem te vais lembrar desses maus momentos por que passámos…
“Por que passámos”, é verdade, eu vítima da Siama, ele vítima da nossa amizade, os dois sofrendo e despejando garrafas atrás de garrafas como se dentro delas estivesse o antídoto para o veneno que “nos” consumiu em cada um dos restantes dias que velei junto ao telefone na esperança do milagre da sua chamada. Fico então à espera, despedi-me, ensina-me tudo, sei que me podes ajudar com a tua experiência. E ele, já a entrar no carro: Está descansado, vais receber uma longa carta, um tratado (riu-se com gosto) que te porá ao corrente de tudo que há a saber acerca delas e te libertará para sempre desse sofrimento inútil.
Mas num momento qualquer durante a viagem não pûde deixar de sorrir. O que é que ele vai dizer-me da Siama se não a conhece, se nem sequer a viu uma única vez? Mas depois reflecti que não deixaria de ser interessante ter o retrato dela feito pelo meu amigo a partir do pouco que tinha sabido contar-lhe durante aqueles oito lancinantes dias.
Uma brasa, tinha-lhe dito logo à minha chegada ao aeroporto de Lisboa onde ele me recebia. E é só isso que te traz de Cabo Verde até cá, perguntou rindo incrédulo. E achas pouco, olhei para ele não entendendo aquela incompreensão, ela vem de muito mais longe, vem do Rio, mas olha que por ela eu iria até ao inferno!
Do aeroporto fomos directamente a um restaurante: Arroz de tamboril é óptimo para abastecer paixões de caixão à cova, troçou ele, sobretudo se conduzido por um bom vinho da Bairrada. Goza, vai gozando, disse-lhe, ainda não a viste, garanto-te que, como eu, vais apaixonar-te por ela, ela é linda, é uma estampa, é simplesmente irresistível.
Já tínhamos atacado o arroz de tamboril quando de repente perguntei ao meu amigo, Sabes o que é amor à primeira vista? Já ouvi falar, respondeu trincando um pedaço de peixe, a mim nunca me aconteceu esse azar. Não sabes o que perdes, insisti, mas ele disse que preferia continuar sem saber.
Também não falei mais, nessa noite vivia na antecipação do sonho que seria estar com Siama no dia seguinte. Amanhã desamparo-te a loja, acabei por dizer, mas olha que foi mesmo à primeira vista, quem nunca experimentou isso perdeu metade do sabor da vida. Ele continuou comendo, mas quando teve a boca desimpedida, e antes de uma nova garfada, perguntou grosseiro, E já a comeste?
Senti um choque. Quem senão um selvagem poderia falar em “comer” referindo-se à maravilha de mulher que era a Siama? Não sejas bruto, disse-lhe, mas sorri para atenuar a rudeza da palavra, uma criatura como aquela não se come. Faz-se o quê então, perguntou ele de novo, cinicamente inocente, bebe-se, ou apenas se cheira como um perfume?
Sim, era isso, cheira-se como um perfume. Ela é como um perfume, pensei horas depois, devia ter respondido que ela é uma espécie de uma suave fragrância que passa pela nossa alma e para sempre a penetra e se cola nela. Mas no momento não tive resposta pronta para aquele deboche, e preferi desviar a conversa para rumos mais elevados: Sabes, ela está noiva, não quis nada comigo enquanto estiver comprometida, sequer um beijo mais profundo, apenas um ósculo fugidiamente roçado quando nos separávamos, acha que lhe perderia o respeito, por isso veio a Lisboa antes de mim, quer desfazer o noivado, achei isso nobre da parte dela.
Entrei no apartamento do meu amigo convencido que encontraria um recado no atendedor de chamadas, porém os únicos que havia eram para ele. Nada, confirmou quando ouvimos todas as mensagens, pelos vistos ela confundiu as datas, deve pensar que chegas só amanhã. Está bem, disse eu, ela há-de dizer alguma coisa.
Mas não disse! Uma única palavra durante os oito dias que passei em casa de ouvido atento ao telefone. O meu amigo chegou ao fim da tarde do primeiro dia de espera. Comeste, perguntou solícito. Sim, qualquer coisa, respondi a tentar aparentar naturalidade, mas não lhe terá sido difícil dar conta de que nem tudo tinha corrido pelo melhor, até porque era evidente que sequer tinha tomado banho com receio de ela telefonar precisamente nessa hora. Vou preparar um jantar para nós, disse, mas entretanto comecemos por alegrar os nossos corações com um delicado branquinho.
Estávamos na terceira garrafa ainda antes do jantar estar pronto quando comecei a falar dela. Ela disse que se chama Siama, um nome estranho, não achas? Isso parece coisa de brasileiro, disse ele ocupado com a caldeirada de borrego que estava a preparar, eles é que gostam de inventar esses nomes assim esquisitos. Ela é brasileira, disse-me que o tinha roubado a uma peça de teatro, achou o nome bonito e desde essa altura que se chama assim, já nem se lembra do seu nome verdadeiro, quis saber se eu gostava e eu disse-lhe que sim, que achava muito bonito.
O meu amigo continuava ocupado com a panela: Mais cinco minutinhos e está pronto, disse, é melhor ires já tomar banho, tem que ser comido quente, o segredo da caldeirada de borrego está na escolha da panela e na quantidade de lume, a questão da cebola, inteira ou em pedaços, é pura treta de quem nada entende de culinária.
Ela também se pretende excelente cozinheira, disse eu distraído, disse que gosta da comida mineira. Terá sido no momento em que disse isso que demos as mãos, porque nenhum de nós tinha tomado consciência de que estávamos de mãos dadas senão quando, já no meio da rua, a puxei para mim para a desviar de um carro que vinha em velocidade. Mas era bom tê-la assim de mãos dadas e por isso continuei a fazer de conta que se tratava de um acto de acaso.
Tinha vivido os dias seguintes no arrependimento de não ter ficado no Rio e na expectativa de a reencontrar em Lisboa como tínhamos acabado por combinar ali mesmo no aeroporto quando demos conta de que estávamos a cometer um erro inconcebível que era permitir que o espaço nos separasse depois de a sorte nos ter juntado.
Estamos a cometer um erro, murmurou ela de repente. Já me tinha ocorrido que estávamos a fazer uma grande asneira, de modo que lhe perguntei, só para confirmar, De nos separarmos agora? Sim, respondeu ela, de nos separarmos agora que nos encontramos.
Mas eu tinha mesmo que viajar! Tenho mesmo que partir hoje, disse-lhe sentindo como errava, posso é regressar quando quiseres. Ela sorriu, feliz finalmente: Não preferes que a gente combine para Lisboa? Sim, prefiro, combinemos então para Lisboa.
Decidimos o dia da chegada de cada um, e dei-lhe o número do telefone para onde nunca chegou a chamar, nem naqueles oito dias nem em nenhum outro, como me foi informando o meu amigo, até que o delírio da sua ausência começou a ser substituído pela ansiedade da chegada da carta que ele dizia estar em plena efectivação. Assim, todas as segundas e quintas levantava-me cedo para que o correio não me surpreendesse desprevenido, até à manhã do percalço que me levou a guardar o leito por tantos dias. E foi numa dessas noites que a Siama chegou. Vieste sem avisar, lamentei, e agora apanhas-me doente. Não faz mal, respondeu, apenas vim trazer-te a carta do teu amigo.
Acordei com o sol entrando pela janela, e ainda lia a longa missiva enrolada nos meus dedos. Era afinal apenas uma ponta do lençol que me prendia os movimentos, mas saltei da cama angustiado quando dei conta que eram onze horas da manhã de uma quinta-feira. Porém, depressa me tranquilizei lembrando-me que agora temos carreiras aéreas durante toda a semana, todos os dias ficaram igualmente importantes para a espera da carta.
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