Perdoar e esse minúsculo não sei o quê a que chamamos o sal da vida
No fim de semana passado, a crónica do Padre José Tolentino Mendonça no Expresso era, mais uma vez, straight to the heart. Não o leio todas as semanas, mas sempre que leio, as palavras que escreve ficam-me na memória. Uma outra crónica, também deste ano, intitulada 'O sal da vida' vive na minha mesa da cozinha desde há seis meses. Só porque de vez em quando preciso de voltar àquele texto e àquelas palavras. Tem um aspecto - como podem constatar na foto junto - 'usado'. Já lá passaram alguns pequenos-almoços, já vários amigos pegaram desinteressadamente na revista e acabaram a ler a crónica até ao fim, já teve cestos da roupa em cima, travessas de comida, compras ao sábado. Mas foi e vai ficando. Nesta crónica, José Tolentino Mendonça fala de Françoise Héritier, uma antropóloga com 80 anos, convidada para 'a cadeira que Lévi-Strauss deixou vaga no Colégio de França'. E a partir daqui conta-se a história de um bilhete postal enviado por um amigo à antropóloga onde é usada a expressão 'roubei esta semana para umas breves férias'. Héritier escreve então uma carta, sem destinatário, sobre o nosso uso do tempo, sobre a voracidade dos nossos dias.
"A verdade é que privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia, o que é, se não isso?"
No sábado passado, José Tolentino Mendonça escreveu sobre o perdão. desculpem, escreveu com uma generosidade comovente sobre o perdão. Não sei se existia uma mensagem também subliminar ao outro perdão, o dos abutres, vulgo o da dívida, talvez sim. Gosto de pensar que sim. Mas, na realidade, o que li foi sobre o perdão entre todos nós, na nossa vida diária, o perdão como uma forma de progresso, de novo dia. O que li era para todos nós, o que li era para mim num ano em que, em vários momentos, naquele optimismo com a espécie humana que me tem acompanhado, fui obrigada a conviver com o lado negro da força, a natureza humana no seu estado de mesquinhez e obscurantismo.
E estão ali as palavras escritas. "Todos precisamos de perdão. O perdão instala um corte positivo, interrompe a baba inútil de tristeza, esta maceração que nos faz infelizes e nos leva a esmagar os outros de infelicidade".
E é tão isto. Lembrei-me que há uns anos, por uma razão que na distância do tempo me parece tão absolutamente inútil, tive uma zanga com uma das pessoas que me é mais querida. Durou meses. Um dia conversámos e essa pessoa perguntava-se se já me tinha esquecido da razão que nos levara a zangar. Eu, feliz com o reencontro, disse-lhe que não me tinha esquecido mas que tinha decidido não me lembrar. E que bela decisão essa foi.
"Tão facilmente ficamos atolados em becos cegos, em círculos sem saída, reféns de uma amargura que cada vez mais vai sendo mais pesada e contamina inexoravelmente a vida. O ato de perdão é uma declaração unilateral de esperança. O perdão não é um acordo. (...) Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha." Ou seja, não conseguindo dizer melhor do que quem escreveu, o perdão é um acto de liberdade, talvez da liberdade mais libertadora, passe o pleonasmo, a que nos faz seguir em frente.
José Tolentino Mendonça acrescenta ainda um pormenor, que tantas vezes é tudo menos pormenor: "muitas vezes aproveitamos a dor para nos instalarmos nela. Preferimos a esgravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa. (...)
Ora, para perdoar é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O sol não brota de repente."
Ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há é provavelmente a melhor declaração de vida que li nos últimos tempos. E é tão estranhamente verossímil esta descrição. Pensem lá, nos vossos trabalhos, nas vossas famílias, quantas pessoas encontram presas ao que correu mal, com um prazer tortuoso no que correu mal e em prolongar a vida do que correu mal, mesmo quando já não corre assim tão mal.
Precisamos de interromper esses ciclos. De perdoar. De perdoar-nos também. Para seguir em frente.
E volto ao texto sobre o sal da vida:
"Há uma leveza, uma graça singular no puro e simples facto de existir, para lá de todos os compromissos profissionais, dos sentimentos intensos, das lutas políticas e humanas: é disto e de nada mais que vou agora procurar falar. Desse minúsculo não sei o quê a que chamarei o sal da vida".
Há uma lista abolutamente extraordinária que se segue de actos de 'puro acto de existir'.
- 'Recordar-se sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás'
- 'dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n roll'
- 'passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance'
- 'improvisar durante a semana um jantar de amigos'
- 'não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota apesar de todos os esforços'
- 'preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga) herdada da avó,
- 'respirar devagar e de olhos fechados num prado'
- 'reencontrar no armário o calçado de verão quando ainda é inverno'
- 'pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida'.
Termina com 'ser feliz quando os outros são'.
Para a minha amiga Catarina, que fez anos esta semana e que me/nos lembra sempre que pode que o tempo é para ser vivido, e para a minha amiga Helena, a minha antropóloga de serviço, com quem partilho há uma vida a liberdade de errar e de perdoar (à vez).
Além de todos vocês, claro.
Sexta-feira, 25.10.13
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