ARQUIVO GLOBAL: Músicas do (nosso) Mundo"Trás-os-Montes" Né Ladeiras
Cada Terra com o seu uso e cada roca com o seu fuso . Este ditado, tal como todos os exemplos da sabedoria Popular, estão carregados de razão. A família Humana pode partilhar o mesmo código genético, mas as semelhanças não vão muito além disso. Dependendo do ponto do Planeta, do clima e de uma miríade de condicionantes, cada povo encerra em si uma identidade única, moldada pela sua história particular e representada pela sua tradição. Uma das maiores riquezas da Humanidade reside mesmo na sua impressionante diversidade.
Muitos pensadores, desde Focault a Marx , desenvolveram teorias sobre a relação entre a Arte e a Sociedade mas, de uma forma ora mais Filosófica, ora mais terrena, a conclusão a que chegaram foi mais ou menos a seguinte: as manifestações artísticas, em todas as suas formas, foram sempre, desde o amanhecer da Humanidade, um meio de retratar o nosso quotidiano, não apenas os grandes acontecimentos, mas também as nossas actividades do dia-a-dia. De um modo mais expansivo, a Arte é também uma forma de consciencializar e de estimular o nosso sentido crítico, de fazer pensar. Fundamentalmente a arte é o reflexo da identidade e da tradição popular, através do talento e visão do seu criador.
E a Música, a arte que nos une neste Fórum, através dos folclores locais, dos Hinos e dos cânticos ancestrais, possui o dom de levar os usos e costumes de diferentes povos, mesmo os mais remotos, para além fronteiras e dá-los a conhecer ao resto do Mundo. Como em tudo, em nome da Globalização e do negócio, que não podemos esquecer é uma parte importante da Música, foi necessário rotular os sons característicos de cada região, que não se encaixavam no Rock nem na Pop e assim, convencionou-se reunir todas essas manifestações culturais num enorme caldeirão multicolor chamado Música do Mundo ( World Music ).
A World Music , como é do conhecimento de todos, está na moda. Não faltam festivais alusivos, desde o FMM Sines ao Andanças. Estes certames servem para dar a conhecer ao grande público um pouco da cultura e tradição de povos distantes e de música interessantíssima que, de outro modo, desconheceríamos por completo. No entanto, como acaba por acontecer a todos os fenómenos quando adquirem uma maior visibilidade, começa a surgir alguma Música do Mundo "formatada", esta não com o intuito de representar uma tradição, mas antes feita para agradar ao maior número de ouvintes possível.
E nós Portugueses, temos música que identifique as nossas raízes? Sem dúvida, ou não fosse o Fado epicentro dos mais emocionados motivos de orgulho e também o nosso rico Folclore, com os seus belos trajes, danças e cantares. São muitos e bons os exemplos de nomes que carregam o Estandarte Lusitano na música que fazem, mas como eu não gosto de defender a música Portuguesa recorrendo ao miserabilismo e á pequenez, devemos gostar da nossa música se ela nos agradar de facto. Em Portugal também se faz música má, muito má.
A sugestão que vos apresento data já de 1994, mas na minha opinião, é um dos mais ricos exemplos Nacionais de divulgação cultural através da música que eu já tive o prazer de ouvir. " Traz-os-Montes" da Né Ladeiras.
Este disco foi o fruto de uma investigação que durou cerca de dois anos, na bela e remota Terra de Miranda do Douro, no Norte de Portugal, na região de Trás-os-Montes, bastante próxima da vizinha Espanha. Esta é sem dúvida uma região especial, ou não tivesse o seu próprio dialecto, o Mirandês , que cruza a nossa língua com o Castelhano de um modo bastante peculiar e apropriadamente, é no seu dialecto original que a Né Ladeiras e os seus músicos reinterpretam á luz dos nossos dias um cancioneiro com séculos de existência.
A qualidade dos arranjos, dirigidos pelo multi-instrumentista Ricardo Dias e brilhantemente executados por um excelente naipe de músicos é extraordinária e a pontificar está a voz da Né Ladeiras , carregada de antiguidade e de sabedoria, quase como se ela fosse a nossa Lisa Gerrard (não por acaso, a Né fez uma espectacular versão da "Song of the Sibyl" dos Dead Can Dance ). E para provar que este não é um disco qualquer, a equipa responsável pelo trabalho meteu as mãos á obra e mergulhou de cabeça no cancioneiro tradicional e das danças Populares e em estudos efectuados ao longo dos anos por Musicólogos e Etnógrafos, em especial modo, do Dr. António Mourinho . Deste modo, foram descobertos cantares que remontam ao séc. XVI e outros cuja origem se perdeu na bruma dos tempos.
O primeiro tema e talvez o mais reconhecido, chama-se "La Çarandilhera" e para além da sua graciosa melodia, as suas palavras transmitem um humor refinado, contando a história de três comadres que se juntaram a fazer uma merenda, e muito provavelmente, a coscuvilharem, até que chegou o marido de uma delas, a Inês. Aparentemente, o homem não achou piada á cena e desatou a bater nessas desocupadas e claro, Quem lhebou más palos foi la pobrecita Inês ... Mas são vários os temas abordados: o Baile do "Pingacho" e da "Cirigoça" , a canção de embalar de "Anda duermete niño" , o cântico de Natal de "Beijai o menino" . Mas engana-se quem pensa que os antigos não se afligiam com a complexidade dos problemas do coração, senão reparem:
Em "Linda Pastorica" , um belo dueto entre a Né e o Fausto , é relatada a dramática história de dois pastores apaixonados cujo amor é fatalmente apunhalado quando descobrem que ambos são irmãos; Os terríveis encantos da beleza feminina disputados por quatro tontos apaixonados são descritos no belo e atmosférico "En Tu Puerta" , cuja letra vale a pena conhecer na íntegra: ...En tu puerta estamos cuatro y todos cuatro te qu'remos y salga la niña y escoja, los demás nos volveremos.. . E como convém, a infidelidade não podia ficar esquecida, no divertido "Roro" , um amante clandestino tão destemido, que nem a presença do marido traído arrefece a sua vontade de ceifar em seara alheia : ...Cabeça de burro bocê não m entende al pai del niño na cama se estende, ai roro, ai roro que agora no...
Mas se eu tiver de eleger a "pérola" deste belo disco, sou obrigado a escolher "La Molinera" , cantada em Castelhano, uma canção defiadouro (os defiadouros eram reuniões nocturnas típicas da região Mirandesa, em que as pessoas se juntavam para fiar a lã e o linho e outros afazeres agrícolas e eram momentos propícios para entoar estes cantos de outras eras). Apenas vos posso dizer que é uma bela melodia e que essa"Molinera" certamente teria os seus encantos.
É bem provável que este disco esteja hoje fora de catálogo, mas espero estar errado, pois sem exagerar, coloco a minha mão no fogo pela sua qualidade, sem medo de queimar-me. De qualquer modo, certamente existirão outras vias de conhecer as canções que vos apresentei e já agora, se tiverem curiosidade, porque não conhecer um pouco mais da obra da Né Ladeiras , que apesar de não ser o primeiro nome da nossa música que nos ocorre, é sem dúvida um dos mais importantes. O mesmo acontece com o Fado. Já é bem tempo de as pessoas descobrirem que há mais fadistas para além da Mariza ...
Como disse antes, começa a aparecer muita Música do Mundo feita em série, como se de repente juntar o som dos Balcãs, de África ou das Caraíbas a alguns Loops e guitarradas, tipo um pudim instantâneo, fosse a receita. Porém, temos alguns exemplos felizes dessa mistura moderna, como os Terrakota , os Blasted Mechanism e os Dazkarieh e outros mais tradicionais e veteranos como os grandes Gaiteiros de Lisboa . Não podia deixar de destacar um dos mais espectaculares projectos Nacionais, os que melhor transportaram o Fado para um ambiente urbano e contemporâneo, mas sem lhe retirarem a sua alma e identidade: A Naifa . Respeito João Aguardela, muito respeito.
Mas na arte de vender, safa-se quem for mais esperto. Desde que o homem se conhece como tal, sempre existiu um Charlatão capaz de impingir a banha da cobra e de vender areia aos Árabes. O segredo meus amigos, reside na embalagem, mais propriamente no Rótulo: Ó meu amigo, então não quer levar esta cassete do Conjunto de Danças e Cantares de Freixieira de Cima? Não sabe o que perde: Você pensa que isto é uma Ranchada, mas não é. Isto é uma coisa nova, é Musica do Mundo!
Muito bem, duas cassetes! Quer um saquinho?
http://blitz.sapo.pt/
http://www.rtp.pt/play/direto/antena3