ARQUIVO GLOBAL: O correio eletrônico d’antanho
Antigamente a escola era risonha e franca. E o correio eletrônico um inocente e útil meio de troca de mensagens entre pessoas educadas.
Pergunte por aí quem inventou o correio eletrônico e provavelmente lhe responderão que foi Raymond Samuel Tomlinson (Ray Tomlinson) nos idos de 1971. Mas há controvérsias. O que, aliás, é perfeitamente natural. Se você imaginar que a expressão “correio eletrônico” é suficientemente vaga para designar qualquer troca de mensagens por meios eletrônicos (o que, com alguma boa vontade, pode abarcar inclusive o conceito de mensagens trocadas via FAX), que a Internet e sua precursora ARPANET datam do início dos anos sessenta do século passado, que suas ferramentas estavam à disposição de quem lidava com ela e que quem lidava com ela eram cientistas e acadêmicos que tinham necessidade de se comunicarem à distância, não deve causar espanto que inúmeras formas de trocar mensagens por meios eletrônicos tenham pipocado aqui e ali, simultaneamente ou não, concebidas independentemente por diferentes “inventores”. Por exemplo: a primeira e mais simples delas surgiu em 1965, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), foi batizada de MAILBOX e consistia simplesmente em transferir um arquivo texto contendo a mensagem para o “diretório” do destinatário, um lugar que ele a encontraria facilmente na próxima vez que se registrasse na máquina (ou nela fizesse “login”). Esta era, sem dúvida, uma troca de correspondência usando meios eletrônicos, mas o detalhe é que o computador do MIT era uma máquina de grande porte (“mainframe”) à qual os usuários se conectavam através de terminais “burros” (ou “estúpidos”, como são chamados em Portugal) que apenas funcionavam como dispositivo de entrada e saída e não tinham capacidade própria de processamento. E o sistema só funcionava no âmbito do computador do MIT, ou seja, todos os correspondentes tinham que estar ligados à mesma máquina. O que dificilmente corresponde àquilo que hoje consideramos “correio eletrônico”, embora se encaixe na definição da Wikipedia em inglês , segundo a qual correio eletrônico (“email”) é “um método de intercâmbio de mensagens digitais entre um remetente e um ou mais destinatários”. E assim como o MAILBOX, houve diversas outras tentativas bem sucedidas de implementação de um meio de troca de mensagens digitalizadas, o que ensejou a aparição de diversos “inventores” do correio eletrônico – inclusive certo V.A. Shiva Ayyadurai que concebeu um método de troca de mensagens eletrônicas em 1978 e que trata o assunto como uma competição, insinuando que não é reconhecido como o verdadeiro inventor do correio eletrônico porque os demais cientistas que desenvolveram técnicas de intercâmbio de mensagens antes disso (inclusive Ray Tomlinson) sítio “ organizaram um grupo contra ele ” (a gente vê cada coisa na Internet que custa a acreditar...) Mas o que faz com que a maioria dos especialistas conceda a primazia a Tomlinson é o fato dele ter concebido seu sistema para ser usado via Internet, ou seja, o correio eletrônico que conhecemos. Pois na verdade o que ele fez foi adaptar o SNDMSG, mais um sistema de troca de mensagens “locais” da ARPANET (ou seja, entre pesquisadores ligados aos mesmos computadores) usando o protocolo de transferência de arquivos CYPNET que ele, Tomlinson, havia desenvolvido, para que as mensagens pudessem ser enviadas de qualquer usuário para qualquer usuário de um computador conectado à ARPANET (e, posteriormente, de sua sucessora, a Internet). É claro que isto originou uma complicação: identificar “em” que computador o destinatário estava localizado. O que foi resolvido por Tomlinson adotando um caractere disponível em todos os teclados mas até então desprezado: o hoje popular “@” (conhecido por “arroba” em português e “at”, em inglês), indicando que fulano estava “em” (“at”) tal computador. E se você quer saber por que “@” tem este significado, o que o leva a constar em destaque nos teclados e o que “arroba” tem a ver com tudo isto, sugiro a leitura das colunas “Arrobas, a origem” (publicada em 03/01/2000) e “Um dia na Catalunha” (de 10/01/2000), que podem ser encontradas visitando a seção Escritos do Sítio do Piropo, clicando no ícone “Coluna do Piropo/Trilha Zero” no painel esquerdo, depois no atalho (”link”) “2000” no direito e finalmente buscando os títulos das colunas no pé da página que se abre com a lista das colunas publicadas naquele ano. Resumindo: havendo ou não divergências quanto ao fato de Tomlinson ter “inventado” o correio eletrônico, é ponto pacífico que foi ele o introdutor do símbolo “@” para formação dos endereços, o que é uma boa indicação de que ele inventou pelo menos o correio eletrônico como o conhecemos hoje, criando o que na época foi considerado um avanço extraordinário que viria a modificar os hábitos dos seres civilizados.
Figura 1: interface antiga de cliente de correio eletrônico Evidentemente os primeiros programas de trocas de mensagens eram bastante rudimentares. Tela texto puro, comandos pelo teclado (nada de mause naqueles tempos) e incapazes de transportar anexos. A Figura 1 mostra a interface do “sup” (um programa moderno usado apenas como exemplo do tipo de interface; a figura foi obtida no sítio GitHub) que dá uma ideia de como eram os programas d’antanho. Mas, comparados com os tempos modernos, as diferenças não ficavam apenas na interface, muito pelo contrário. Nos primórdios da Internet a rede só estava ao alcance de acadêmicos e cientistas das instituições a ela conectadas. Que foram, portanto, os primeiros usuários do correio eletrônico. Gente séria, focada em seu trabalho e que usava a rede principalmente para trocar experiências sobre suas pesquisas. Uma ou outra mensagem tinha um conteúdo pessoal, pois a tendência era que os cientistas envolvidos no mesmo ramo de pesquisas viessem a se conhecer pessoalmente nos congressos e seminários técnicos e científicos, mas tudo sem grande intimidade. Se alguém se der ao trabalho de fazer uma pesquisa em todas as mensagens trocadas via correio eletrônico antes de 1995, duvido que encontre um único “kkk”. Não havia regras oficiais estabelecidas sobre o que poderia ou não ser incluído em uma mensagem, mas havia uma espécie de acordo tácito sobre o assunto, conhecido como “Netiquette”, um conjunto de regras de comportamento que constituía a etiqueta a ser usada na rede por pessoas educadas. Com a abertura do acesso à rede para o cidadão comum e o brutal crescimento do número de usuários de correio eletrônico que isto implicou (o que provocou o inevitável decréscimo da porcentagem de “pessoas educadas” neste conjunto), a Netiquette hoje não passa de uma espécie de peça de museu que serve para lembrar como era diferente o tempo que passou, mas quem tiver interesse nela (que, afinal, é um conjunto de regras sensatas perfeitamente aplicáveis nos dias atuais pelas pessoas educadas) pode consultá-las a partir da página “NETiquette” do sítioAlbion . E aproveitar para visitar o próprio Albion, um sítio “que vem saudando e orientando novos internautas desde 1990”. E havia regras que apesar de não constarem textualmente da Netiquette, eram consensualmente respeitadas. Por exemplo: não escrever mensagens em maiúsculas PARA NÃO DAR A IMPRESSÃO DE QUE ESTAVA GRITANDO era uma delas e quem a desobedecesse receberia um discreto lembrete sobre o assunto do interlocutor. E pobre de quem se atrevesse a enviar uma mensagem a múltiplos destinatários contendo qualquer coisa que mesmo de longe desse a impressão de que se tratava de publicidade de algum produto comercial. O remetente seria execrado, receberia uma chuva de flamejantes mensagens de protesto de todos os destinatários e, caso viesse a reincidir, muito provavelmente seria banido e teria seu endereço bloqueado por praticamente todos os correspondentes. Assim foi o início da era do correio eletrônico. Na próxima coluna veremos como ele evoluiu.
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BENITO PIROPO
Blogueiro
Publicado em 25 de Junho de 2015 às 13h51