A infância vai extinguindo algo que nos quer matar.
Há dias atrás celebrou-se o Dia da Gentileza, efeméride de que não tinha conhecimento. A gentileza é um prolongamento de nós próprios que não se aprende mas que se adopta por osmose. Contudo nos dias de hoje muita gente parece querer adoptar ou vestir algo diferente, algo que lhes é estranho, a camisola da violência. Muitos vezes no transito, sem nenhum motivo aparente alguém gesticula no sentido do peão, que é o meu sentido, sem que haja nenhum motivo e por variadíssimas vezes, qualquer expressão ou gesto de parte a parte, termina num sorriso aberto, o que me faz pensar, que de facto as pessoas procuram uma inumanidade que não possuem, querem exercitar algo para o qual as nossas estruturas humanas e até físicas, não estão preparadas. A linguagem humana difere do código da violência, uma pessoa conhecida pela educação, afabilidade pela sua caridade chega ao fim da vida no expoente máximo das suas qualidades e virtudes. Eu pratiquei por inúmeras vezes o código da rudeza e, talvez não tenha consciência sequer de uma ínfima parte das minhas faltas a este nível. Nasci em Lisboa e fui criado em Moscavide. Moscavide foi sempre um lar para mim, lar no verdadeiro sentido de amor e amizade, conhecia e cumprimentava quase toda a gente e tinha verdadeira amizade por muitos. Recordo com saudades a Dona Alexandrina uma vendedora ambulante muito minha amiga que me oferecia praticamente tudo, e de como me preocupava pelo seu bem-estar e exposição aos elementos da natureza. A Dona Lucinda da padaria, uma simpática e caridosa senhora que começava as conversas comigo, muitas vezes com 'então ouve lá Pedro...'. Da minha Professora primaria, a Dona Rosa frequentadora da padaria, sempre impecável no seu 'apparel'. Quando a Dona Rosa por alguma razão estava triste, todos ficávamos tristes, tinha uma capacidade grande de passar sentimentos e foi sem duvida a pessoa mais firme que conheci ate hoje, em matérias disciplinares só havia leitura, um procedimento. Hoje em dia continua a ser assim, só que Dona Rosa, só havia uma. Não há um dia só em que não me lembre das aventuras com o miúdo mais travesso que conheci até hoje, o Jorge, o meu primeiro amigo no que a amizade tem de melhor e...melhor. O Jorge era um tecnicista, um tipo 'bom de bola' mas não muito bom da bola, talvez porque eu tinha 'petardo' um pontapé, que já perdi, mas que se não entrasse na baliza, fazia mossa, muitas vezes na cabeça do Jorge, as vezes numa janela. O meu amigo tinha ambições no mundo do contorcionismo, e explorava constantemente os limites de tudo o que era físico através duma aposta, que consistia em...apostar: - "Queres fazer uma aposta como me atiro do talho abaixo de cabeça e não me aleijo?" e assim era, não se aleijava. Mais tarde o Lourenço um basquetebolista nato e um dos tipos mais engraçados que ja conheci. Recordo com especial saudade um jogo contra jogadores da equipe B do Sporting, em que levamos 17-0, e onde este extremo do Basquete a certa altura começou a colaborar com a equipa adversaria contra as a minha instruções expressas (era o capitão de equipe) para atirar a bola para fora do perímetro do recinto. Acabamos expulsos e o jogo terminou por falta de condições anímicas, pois todos rebolavamos de tanto rir, o nosso guarda redes ficou com cãibras na face de tanto se rir.Talvez na minha infância já houvesse quem de alguma forma quisesse alinhar pelo 'team' da maldade mas não nós, o nosso team era o 'dream team' onde tudo corria bem mesmo que assim não fosse. E penso que hoje em dia continua a ser assim. As pessoas revelam na ira exacerbada, também muito da sua inocência o que me leva a concluir que há sempre uma saída para uma situação de tensão e muitas vezes essa 'porta' conduz a um caminho, a nossa infância, um caminho de amor e amizade, um caminho de virtudes, uma travessia feita de sonho, de brisas, de vento forte, que vai extinguindo algo que nos quer matar.